Victor Brecheret Filho
Em entrevista exclusiva ao Atibaia Mania,
fala da vida e obra de seu pai que dá nome ao novo
Centro de Convenções e Eventos da cidade, em bonita
homenagem feita pela Prefeitura.
AM: Para conhecer você um pouco melhor,
gostaríamos de traçar um pequeno perfil. Então
perguntamos:
·
Qual a sua idade?
·
Qual a sua formação?
·
No que você trabalha?
·
Você é casado? Tem
filhos?
VBF: Tenho 67 anos, sou engenheiro
civil, mas trabalhei principalmente com energia. De
todas as formas, desde projetos e construção de usinas
hidroelétricas, planejamento de sistemas energéticos,
fontes alternativas, gás natural (fui presidente da
Comgás 4 anos), privatização e operação de empresas
concessionárias de distribuição, etc. Trabalhei também
com projetos e estudos na área de transporte, portos e
marinas, além de construção civil. Certa altura, fiz um
ano sabático e fiz algumas incursões na área de artes
plásticas e cheguei a expor algumas coisas. Porém o
choque com tantos anos de racionalidade (engenharia)
tornou muito difícil esta convivência. Voltei a
trabalhar. Dois filhos (uma médica e um engenheiro) e
dois netos.
Victor visitando a
AM:
Qual é a história da sua família em relação à Atibaia?
Perguntamos isso, pois há um raro afresco de seu pai na
capela da Fazenda Pararanga.
VBF:
A
relação de meu pai com Atibaia se deve a alguns amigos
dele, em especial Dr. Claudino do Amaral, filho do Dr.
Zeferino do Amaral e Dona Evelina, atibaienses da gema.
Eles tinham umas fazendas na região, próximas da Usina
Elétrica e da Usina de álcool dos Matarazzo e,
se
bem me lembro, seguindo por um bairro retirado, de nome Caetetuba, mais ou menos na direção de Bragança. Estas
fazendas eram vizinhas às dos Pires de Camargo
(Fazendola) e
do José Pires (Fazenda São
Bento). Este Dr. Claudino era uma figura extraordinária,
muito simpático e brincalhão,
que
nos convidava junto com muitas outras pessoas e crianças
para passarmos todos os anos, quinze dias na primeira
semana de julho. Era uma alegria imensa, férias de
verdade. Já faz tempo. Cinqüenta e cinco a sessenta
anos. Não havia a Fernão Dias, a estrada era de terra, e
para mim, a aventura de férias na fazenda começava na
viagem, tão esperada o ano todo. Meu pai,
com sua alma de artista, era um apaixonado pela paisagem
e pela vida bucólica do campo, da lavoura de café, da
criação de gado, e das gentes que lá moravam. Como a
esposa do Dr. Claudino, a quem chamávamos de Tia Glorinha era muito religiosa, às tantas se decidiu
construir uma Capela, naquele ambiente quase religioso,
quase franciscano, entremeado de natureza e animais. Meu
pai fez o projeto e toda a decoração. Era bem rústica,
bem campestre. Aliás, meu pai tinha uma grande admiração
pela figura de São Francisco, sempre às voltas com
animais. Deve ter se inspirado nele para criar a Capela.
Pintou um mural, e esculpiu o Crucifixo, a Nossa Senhora
com Menino, escultura esta que ficava do lado de fora. Meu pai
faleceu em 1955. Depois a família do Dr. Zeferino e os
filhos resolveram realizar uma missa, para tornar a
Capela uma igreja oficial. Ela estava subordinada à
Diocese de Bragança, cujo Bispo não era muito “moderno”
e não permitiu a missa com aquele mural, tão diferente
das pinturas usuais das igrejas. E não teve jeito.
Depois de longo tempo e muita insistência, foi preciso
colocar uma enorme cortina para cobrir o mural quando
dos atos religiosos...Após a morte de meu pai, voltei à
Fazenda Pararanga (este era o nome) algumas vezes. Porém
o tempo afeta a todos, e também morreram os amigos de
meu pai, as terras foram divididas entre os herdeiros,
partes foram vendidas e apesar da amizade, acabou-se o
encanto da infância, das lembranças boas e fortes, das
personalidades
que lá conosco curtiam
aquela primeira quinzena de julho...
Capela da Fazenda Pararanga
"Pintura mural da Capela da
Fazenda Pararanga",
Foi censurada para permitir a realização de atos
religiosos.
Clique na foto para ampliar
"Cristo"- Peça executada para a Capela de Pararanga.
Década de 50.
AM: Você
sabe que o Centro de Convenções e Eventos da cidade leva
o nome de seu pai? Já participou de
algum evento nesse local?
VBF:
Quando algum lugar, ou alguma
viagem ou um momento “único” nos marca de maneira
especial, é bom a gente não procurar repetir, pois quase
com certeza vai se frustrar. Assim, não mais voltei à
Atibaia, tão querida de minha infância. Sei que
recentemente a cidade construiu o Centro de Convenções e
Eventos Victor Brecheret. É muito emocionante e muito
lisonjeiro para mim, mas acho que está mais ligado ao
conjunto de sua obra do que aqueles períodos mágicos que
passávamos na Fazenda Pararanga. Meu pai gostava tanto
de lá que pensava em comprar uma pequena propriedade
vizinha, mas não deu tempo. Conheço o Centro de
Convenções e Eventos apenas por fora, pois o dia que lá
passei, estava fechado.
AM:
Você se lembra do seu pai trabalhando? Acompanhava de
perto os momentos em que ele esculpia?
VBF:
Lembro-me
bem. Meu pai era uma figura muito especial, calada,
taciturna, trabalhadora ao extremo, incansável. Como ele
morou muitos anos na Europa, (França e Itália), absorveu
o método da escola clássica, e que é preciso ser
rigoroso ao extremo, não dá para, em arte, cortar
caminhos. É preciso conhecer as técnicas em
profundidade, anatomia, desenho, enfim os fundamentos.
Ele casou-se tarde e quando morreu, eu tinha treze anos.
As minhas lembranças estão muito nos grandes galpões no
Ibirapuera, onde estavam as maquetes e blocos de granito
do futuro Monumento às Bandeiras. Naquele tempo o local
estava cercado por um imenso tapume, e não havia nem as
avenidas e nem o Parque do Ibirapuera, cuja inauguração
se deu em 1954 por ocasião do Quarto Centenário da
Cidade. Lá dentro dos galpões estava
também o gesso em escala 1 para 1 do Monumento à Caxias,
que depois foi fundido em bronze no Liceu de Artes e
Ofícios. Esta é uma figura imensa. Basta falar que
quando do término da
fundição, antes de ser colocado em cima do pedestal onde
se encontra, foi realizado na barriga do cavalo, um
banquete de comemoração pelo governador do Estado, com
50 pessoas! Outras estátuas públicas também lá estavam
também em gesso. Meu pai tinha lá dentro uma sala que
era o seu atelier de trabalho, de criação, fisicamente
separado das outras grandes peças, mas tudo compondo um
ambiente felliniano. Era muito silencioso, tinha muitos
pombos que ficavam arrulhando o tempo todo. Tudo muito
especial.
Ele era um artista integral, um
escultor. Desenhava muito, estudava muito as suas
composições, era um apaixonado pelo Brasil, pela
imensidão deste pais. Naquela época aconteciam diversas
entradas nas regiões do Brasil Central, onde hoje é o
Xingu e proximidades. Aquelas excursões dos irmãos Vilas
Boas e outros
expedicionários o
emocionavam muito. Aqueles contactos com tribos
desconhecidas, aquelas aventuras, tudo isto se refletiu
na sua fase indígena, repleta de natureza, de
brasilidade. Posteriormente os dramas amazônicos, em
particular a fascinante ilha de Marajó com seus búfalos
selvagens, também o inspiraram e, nas suas últimas
obras, este tema está muito presente. Meu pai, órfão, porém já com sua
vocação muito bem definida, estudou no Liceu de Artes e
Ofícios e em seguida, no início do século XX aos 17
anos, voltou à Itália para continuar a sua formação
artística. Por não ter um diploma oficial italiano não
pode cursar a Academia de Belas Artes, e assim ele foi
trabalhar com aprendiz de atelier de diversos escultores
da época. Foi uma vida muito difícil. Fico pensando como
ele sobreviveu e venceu. Conseguiu superar as
dificuldades e influencias e foi para Paris, onde, em
contacto com os grandes nomes da escultura e da pintura,
absorveu o ambiente da revolução cultural e artística
que lá ocorria. São desta fase algumas de suas obras,
hoje mais consideradas e valorizadas.
Em
1919 produziu a peça “Eva” que foi exposta em Roma e em
1921 foi mostrada em São Paulo, sendo considerado um
marco inicial na ruptura modernista.
Brecheret participou
intensamente da Semana de Arte Moderna de 22 que aqui
aconteceu e revolucionou o ambiente artístico e cultural
da então provinciana São Paulo. Participou à sua
maneira: silencioso, calado, suas estátuas deslumbrando
e falando por si.
"Brecheret no atelier do Parque do Ibirapuera".
Destes gessos é que eram feitas as transposições para o
granito.
"Brecheret esculpindo a Deusa da
Primavera", em mármore de Carrara. Década de 30 (final).
Brecheret esculpindo os alto relevos que estão na
fachada do Jockey Clube de São Paulo.
AM: Uma das obras mais conhecidas
dele, o “Monumento às Bandeiras”, de enormes proporções,
levou duas décadas para ser concluído. Você pode falar
um pouco sobre isso? (quando começou, onde foi feito;
lemos que antes houve um desenho, uma maquete, que havia
uma pedra fundamental, enfim, você pode descrever um
pouco essa fase?)
VBF:
O Monumento às Bandeiras, na
verdade, surgiu de uma disputa entre o recém formado
grupo de artistas modernistas, empenhados em
revolucionar o ambiente político e cultural de São Paulo
no qual Brecheret já se integrara, e a colônia
portuguesa que resolvera homenagear o Brasil pelo
Centenário da Independência, disputa esta que se deu em
1920. Esta situação se arrastou por longo tempo,
envolvendo também o poder público, verbas, patrocínios,
iniciativas, localização, sendo que somente em 1936 as
obras foram iniciadas. Neste período, a arte de
Brecheret evoluiu de forma dramática, como conseqüência
de seus trabalhos e longos períodos passados na Europa,
resultando
em novas idéias e conceitos
para o Monumento. Assim a Maquete inicial de 1922 sofreu
enorme evolução, sendo substituída por outra, muito mais
avançada, liberta da influencia da arte escultórica
européia da primeira década do século, enfatizando a
temática nacional e a formação dos povos brasileiros,
mistura de índios, portugueses, negros.
Foi
definido o local e as obras se iniciaram. Os barracões
foram construídos.
Neles, a
maquete inicial foi sendo ampliada e as formas
tornaram-se definitivas. Foi feita então em barro, em
escala um para um a escultura original, em uma posição
lateral e paralela à definitiva. Em seguida, ao lado,
também paralela, foi feita em gesso, copiado do original
em barro, a moldagem para a execução dos trabalhos de
cantaria, isto é a lavratura em granito. Neste modelo em
gesso são fixados pontos para os sistemas de coordenadas
espaciais, pontos estes que têm correspondência com
pontos identicamente definidos nos blocos de granito.
Este sistema de coordenadas espaciais tem ponteiros que
vão indicando o quanto se precisa cortar da pedra para
chegar próximo à forma desejada. Esta primeira lavra
bruta era feita por operários especializados, em sua
grande maioria, portugueses, denominados canteiros, (que
executam trabalhos de cantaria). Os blocos já
pré-esculpidos eram então encaixados, formando o
monumento em sua posição definitiva. Novamente meu pai
então fazia o acabamento final. Um trabalho hercúleo.
Mas não era tudo. A luta com a falta de verbas, as
interrupções, burocracias, descontinuidades políticas e
administrativas, eram por vezes muito mais difíceis de
lidar.
Finalmente, em 25 de janeiro de 1953, um ano antes do
Quarto Centenário, o Monumento Das Bandeiras é
inaugurado. Quase trinta e três anos após a concepção
inicial. Os barracões são demolidos às pressas, e muitas
das obras inacabadas ou gessos intermediários foram
doados por meu pai, pois não se tinha o que fazer com
elas. Alguns amigos ficaram com muitas esculturas.
Lembro-me bem, de um caminhão da Metalma, que era uma
empresa do Ciccilo Matarazzo retirando diversas peças e
maquetes. O Cicillo era um grande incentivador das artes
no Brasil, criador das exposições Bienais, do MAM e de
outros.
Monumento às Bandeiras: inaugurado
quase 33 anos após sua concepção inicial.
Monumento às Bandeiras - detalhes
Monumento às Bandeiras
- detalhes
AM: E sobre o “Duque de Caxias”? O
processo de criação/trabalho foi o mesmo? Havia um
padrão de procedimento ou cada obra tem sua
característica?
VBF:
O Monumento ao Duque de Caxias
também surgiu de um concurso público, porém a liberdade
artística estava mais contida. Tratava-se de homenagear
uma figura muito importante em nossa história, figura
máxima do Exército Brasileiro. O processo escultórico
foi o mesmo, desde a confecção das maquetes até o gesso
em escala um para um. Nesta etapa, foram feitos moldes
para fundição em bronze. Estes moldes foram então
levados para o Liceu de Artes e Ofícios e fundidos em
partes. Estas partes foram depois
juntadas e soldadas, e
depois a estátua pronta foi içada até o local, no alto
do pedestal. Este monumento também sofreu os entraves
burocráticos e administrativos, sendo que a localização
definitiva foi muito mais complicada e mal resolvida.
Era para ser localizado em diversas possibilidades, como
a antiga Praça das Bandeiras, onde hoje está a Câmara
dos Vereadores de São Paulo, de frente para o vale do
Anhangabaú. A localização atual foi definida na ocasião
porque havia estudos e diretrizes para a área dos Campos
Elíseos, apontando para uma revitalização da cidade
nesta direção. Parece que agora, após tanto tempo, este
eixo de recuperação urbana vai ser finalmente retomado.
AM: Qual é a sua obra preferida?
VBF:
Convivi com as obras de meu pai,
de sua última fase, aquela cujos temas ainda estão muito
atuais. A fase indígena e amazônica, que tem tudo a ver
com a questão atual do meio ambiente, destruição das
florestas, povos indígenas, etc. Há também uma série de
figuras religiosas, que são de uma muito forte
expressão. Meu pai não era um homem religioso, mas
realizou belíssimas figuras de São Francisco, Cristos
Crucificados, Santa Ceia. Algo deve tê-lo tocado na sua
inspiração. Existem peças belíssimas da fase parisiense,
peças em mármore, art-déco. Mas sem dúvida o mais
pujante e cada vez mais atual Monumento das Bandeiras.
Cada vez que eu passo por
lá, e moro perto, não deixo de admirar. Cada vez gosto
mais. E claro, a Capela da Pararanga com seu envoltório
emocional (para mim).
AM: Há outros afrescos/pinturas ou só
o de Atibaia?
VBF:
Ele fez
muitos desenhos, mas desenhos de escultor, com poucos
traços, estudos para suas obras. Não pintava. Realizou
poucas pinturas murais e afrescos. Era basicamente um
escultor. A sua linguagem era a das formas.
AM: Quer deixar alguma mensagem para
o povo de Atibaia?
VBF:
A Atibaia que eu conheci
certamente não existe mais. Cresceu, integrou-se à
megalópole. Sofre dos males e desafios das grandes
cidades brasileiras. É preciso que os atibaienses e quem
mais ela freqüenta,
tenham
consciência
de preservação e
valorização. Deveria conter expansões e tentações
imobiliárias. Apesar desta proximidade perigosa com a
“grande São Paulo”, ainda é uma jóia a ser preservada.
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